Quarta, 4 de janeiro de 2023
Lançado no início de dezembro, o longa-metragem “Êxtase”, da diretora brasileira Moara Passoni, mostra o processo de adoecimento e as estratégias de superação da personagem Clara no período em que ela desenvolveu um quadro de anorexia nervosa grave.
O longa é considerado uma obra de não ficção, pois é construído a partir de dados autobiográficos da diretora — ela enfrentou a anorexia nervosa dos 11 aos 17 anos — e de informações obtidas em mais de 10 anos de pesquisas com mulheres que tiveram ou têm a doença e confiaram seus diários à cineasta.
Durante a produção, Moara atuou paralelamente em outros projetos e fez parte da equipe de roteiristas nomeados ao Oscar 2020 pelo documentário “Democracia em vertigem” (2019), dirigido por Petra Costa (produtora de “Êxtase”).
“Para mim, o filme conta a história de uma pessoa que sofre de anorexia [nervosa] a partir do ponto de vista e da psique de quem padece. Ele é minha história, cruzada com histórias e diários de outras mulheres enfrentando anorexia. Mas não o vejo como um filme estritamente sobre anorexia. É um filme sobre uma garota batalhando para tornar-se mulher e habitar o próprio corpo em um mundo bastante hostil, que tem regras rígidas sobre o que é desejável ou não em relação às formas de existirmos e nos comportarmos. Eu, por exemplo, não me encaixava nas possibilidades disponibilizadas pelo mundo adulto. Então, era como se eu quisesse inventar uma forma de me tornar adulta. O problema é que isso não é um capricho e implica muito sofrimento”, disse Moara ao Medscape. Para a diretora, o filme também trata de uma condição existencial que atravessa todos os seres humanos: “o dilema de ter uma alma que habita um corpo”.
A linguagem escolhida pela cineasta muitas vezes remete a uma atmosfera onírica. O fluxo de pensamento da personagem central é apresentado por meio de uma voz sussurrada, num longo monólogo, e há cenas em que a câmera cria uma atmosfera de tensão ao mostrar os corpos anoréxicos. Esses recursos narrativos ajudaram a autora a se aproximar da subjetividade das mulheres acometidas pela doença. Ao longo de toda a película, a palavra “anorexia” é falada uma única vez: “Eu e as pessoas que participaram da elaboração do roteiro, inclusive uma mulher que vive uma experiência de anorexia nervosa muito grave, queríamos justamente silenciar as falas e diagnósticos [de especialistas] para poder escutar e perceber quem vive a anorexia”, relatou a cineasta.
“O filme tenta ser uma escuta para além dos muitos preconceitos, estigmas e simplificações que fazemos da condição de alguém com anorexia. Quando falamos ‘anorexia’, as pessoas entendem que ‘ah, é uma garota tentando ser bonita e se encaixar nos padrões de beleza’. Mas é muito mais do que isso”, disse Moara. A cineasta está animada com a receptividade dos profissionais da saúde, que têm promovido debates desde que o longa estreou nos cinemas.
Na opinião da Dra. Thaís Zélia dos Santos Otani, “‘Êxtase’ é uma aula em profundidade sobre anorexia nervosa. [Todos os] profissionais de saúde e alunos de graduação em medicina deveriam assistir”. A Dra. Thaís é professora no Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), coordenadora do serviço de psicoterapia da residência em psiquiatria da Santa Casa de São Paulo e mestre em ciências da saúde pela FCMSCSP. Ela participou de um debate sobre o filme e dedicou à obra um episódio do seu podcast, “Escuta esse filme”, que conta com a participação de psiquiatras, psicanalistas e da diretora Moara.
“Com sua delicadeza cinematográfica, esse filme aborda tanto os critérios da anorexia nervosa necessários para um diagnóstico clínico como os aspectos subjetivos da doença, tão comuns aos pacientes que têm a patologia. Mas vai além”, disse a médica em entrevista ao Medscape. Para a Dra. Thaís, a abordagem da diretora revela o funcionamento de um psiquismo adoecido pela patologia.
“As falas da personagem, muitas vezes em conversa consigo mesma, trazem a noção subjetiva do entendimento da protagonista sobre sua condição e sobre a relação com a mãe e com o mundo”, disse a psiquiatra.
Segundo Moara, a maioria das falas foram tiradas dos diários de mulheres com anorexia nervosa. Para a psiquiatra, o filme ajuda a perceber a complexidade da doença. “Os pacientes podem apresentar os mesmos sintomas, mas o que está por trás na história pessoal de cada um, em cada sintoma? É preciso escutar a história deles, não só o sintoma.” O tratamento da anorexia é obrigatoriamente multidisciplinar, envolvendo psiquiatras, clínicos gerais, pediatras, hebiatras, endocrinologistas, nutricionistas, psicoterapeutas e fisioterapeutas. Os cuidados costumam ter longa duração, e o foco é a recuperação de peso e o retorno da funcionalidade.
A capacidade de abordar contradições é um dos aspectos que conferem perspicácia e beleza ao filme, segundo a percepção do pesquisador e professor Dr. José Moura Gonçalves Filho, afiliado ao departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP). Também psicanalista, ele participou de muitas conversas com a cineasta, realizadas antes e depois do lançamento do filme.
Zeca Moura, como prefere ser chamado, disse que o filme aborda um drama humano com inteligência profunda. “Uma pessoa na anorexia ignora e pensa a anorexia ao mesmo tempo. Quer dispensar o alimento e quer viver, afasta-se do outro e busca o outro. A atenção para estas direções contrárias, todas importantes, é a atenção de que muitas vezes os artistas e as artes são capazes: uma atenção alargada e que pode ajudar a medicina ou a psicologia a ver mais, perceber mais, pensar mais, sem estigmatizar ou desmoralizar a pessoa que entrou em anorexia. É empobrecedor e enganador perceber um drama humano simplesmente como uma doença. Escutar a pessoa aparentemente derrotada revela sua luta. O filme de Moara desvenda a anorexia como uma luta”, concluiu o pesquisador.
O pesquisador recomendou a obra especialmente para quem lida com saúde mental. “‘Êxtase’ não é um filme feito do ponto de vista médico, e por isso interessa aos médicos. E, pela mesma razão, também os psicanalistas deveriam assistir ao filme, pois não está amarrado a pontos de vista psicanalíticos. Tudo que o filme mostra é o ponto de vista de uma pessoa comum e incomum: é o ponto de vista de uma cidadã e cineasta que testemunhou o desenvolvimento do drama da anorexia dentro e fora dela. O filme faz perceber que as pessoas em anorexia são silenciadas e precisam ser escutadas. É urgente ouvi‑las de uma maneira despojada, não já armados com teorias e diagnósticos”, disse Zeca Moura.
A abordagem social da cineasta impressionou o pesquisador. “O tipo de tristeza que a protagonista precisou digerir — primeiro ainda menina, depois adolescente — não era somente a tristeza vivida em família, mas uma tristeza histórica. Tudo conversa: pessoa, família, classe e sociedade”, disse o psicanalista. Para ele, o filme mostra claramente que a anorexia nervosa tem biografia e história, e afeta o caminho de indivíduos que, por sua vez, estão ligados ao caminho de outras pessoas. Moara é filha de Irma Passoni, ex-deputada e importante liderança popular nos anos 1970, que foi vítima de violência. “Toda pessoa assolada por tristezas ligadas à opressão, à longa humilhação, pode ser muito atingida e isso pode machucar o ânimo de viver, a vontade de comer, pode abalar a fome de mundo”, declarou o pesquisador. Na visão de Zeca Moura, “a anorexia não é um acontecimento que nasce, cresce e morre em um indivíduo. Não brota do nada e nem isoladamente de alguém. Brota de uma experiência com o outro, de uma experiência do outro comigo e contra mim”, pontuou o psicanalista.
O roteiro do longa-metragem mostra a luta, mesmo que desesperada ou alucinada, de uma personagem que pretende viver sem nada, sem ninguém, e sem comer. “O ânimo de comer deslocou-se para o ânimo de não comer, um protesto altivo: desprezar o que me desprezou. Uma reconciliação desponta suavemente ao final do filme, quando a personagem parece querer-se devolvida ao outro, desde que este seja um amigo de luta”, concluiu Zeca Moura.
Exibido em festivais de cinema em mais de 30 países, entre eles Estados Unidos (no MoMa, o badalado Museum of Modern Art) e Suíça (no festival Visions du Réel), além de ter sido selecionado para a mostra competitiva CPH:DOX na Dinamarca, o filme está em cartaz nas salas de cinema de várias capitais brasileiras.
Fonte: Medscape